domingo, 4 de março de 2007

O Céu de Suely

As primeiras imagens de O Céu de Suely, com sua hipercolorida textura de Super-8 e com o tom afetuoso que emana do casal em cena, não são apenas imagens do início de um filme. Na verdade, mais que começo, essas imagens, captadas com a câmera próxima dos atores, são uma continuação. E não somente da carreira do diretor cearense Karim Aïnouz, mas de um projeto de cinema centrado em corpos. Tanto a protagonista de O Céu de Suely — que rifa uma noite de sexo para conseguir dinheiro e, assim, deixar a pequena Iguatu (CE) — quanto o personagem-título de Madame Satã (2002), o primeiro longa de Aïnouz, usam o corpo para o prazer e para a sobrevivência. Importa nesse projeto o respeito despido de julgamentos pela opção dos personagens, como se fossem autônomos e só restasse à câmera observá-los de perto.

Mesmo enfrentando dificuldades na relação com seus ambientes sociais, Satã e Hermila (que, no decorrer do filme, adota o codinome de Suely) não são coitadinhos. Pelo contrário. São seres potentes, que dependem apenas de si próprios e controlam seus rumos, ora usando o corpo como arma (Satã), ora transformando-o em mercadoria (Hermila). São donos de seus narizes e, ao tomar uma decisão ou agir de determinado modo, assumem a responsabilidade.

Filmar o livre-arbítrio dos corpos, porém, não é o único projeto de Aïnouz. Aos 40 anos, o cineasta converteu-se em uma espécie de líder — mas não exatamente como Glauber Rocha na década de 1960, cérebro, olho, pulmão e voz do Cinema Novo, que procurava manter acesa a chama do movimento artístico entre seus pares. O diretor de O Céu de Suely é mais um aglutinador informal de criatividades, que não acredita em “artistas-ilhas”, embora também desconfie do “cinema de grupo”.

Alguns dos mais importantes filmes assinados pela nova safra de cineastas brasileiros têm o dedo de Aïnouz, seja no roteiro, seja na produção. Cinema, Aspirinas e Urubus, do pernambucano Marcelo Gomes, e Cidade Baixa, do baiano Sergio Machado, encabeçam a lista. Com os dois colegas, Aïnouz compõe algo como um núcleo de exilados nordestinos no eixo Rio/SP.


MESMO BARCO

“Cinema dependente.” É assim que o diretor costuma chamar esse processo informal de cooperação, não sem ironia ao culto romântico da independência, que carrega a imagem do artista solitário e quase autista em suas obsessões. “Gosto de depender dos parceiros. Sou como dono de restaurante, que fica indo de mesa em mesa”, diz Aïnouz. ”Me agrada promover encontros, testar minhas idéias e as dos outros, porque isso nos faz aprender mais e pensar melhor.”

Em O Céu de Suely, ele teve entre seus principais interlocutores o jovem carioca Felipe Bragança, diretor-assistente do filme e um dos responsáveis pelo roteiro.

A aposta na renovação e nos companheiros de geração — entre os quais também inclui o mineiro Cao Guimarães, realizador de documentários poéticos e experimentais — não o impede de integrar-se com quem chegou antes dele. Aïnouz não abre mão, por exemplo, de ter a benção de Walter Salles, cuja produtora, a VideoFilmes, ajudou a abrir portas para o diretor no exterior, possibilitando que O Céu de Suely exiba apenas produtores internacionais em seus letreiros, exceção feita a um crédito para a Petrobras.

Aïnouz se define como sujeito de seu tempo. Em vez de lamentar dificuldades ou encarar os colegas como rivais, age para somar, nunca para dividir. Quando seu novo filme ganhou o prêmio principal, o de direção e o de atriz no Festival do Rio, no início de outubro/06, ele quase se desculpou com os amigos com quem concorria.

Disse que estava constrangido. Sua vitória foi, de qualquer forma, sintomática. Pois quase todos os competidores eram da geração que estreou em longa-metragem a partir de 1994. Ou seja, uma festa entre pares, entre diretores do mesmo tempo histórico, o do Brasil pós-regime militar, pós-fim da Embrafilme e pós-luto pela quase ausência de produção no começo dos anos 90.

Se o Festival do Rio referendou Aïnouz como líder dessa turma, ele simplesmente rejeita o título. “Sinto que há um novo clima no cinema brasileiro, de diálogo, de cooperação, oriundo da consciência de que estamos todos no mesmo barco.”

Ficha Técnica

Direção: Karim Ainouz
Roteiro: Karim Ainouz, Felipe Bragança, Mauricio Zacharias
Elenco: Hermila Guedes, Maria Menezes, Zezita Matos e Marcélia Cartaxo.
Gênero: Drama
Origem: Alemanha/Brasil/França
Duração: 90 minutos
Tipo: Longa
Site: http://www.oceudesuely.com.br/home.htm

Trailer

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