sábado, 1 de outubro de 2005

Oliviero Toscani


Oliviero Toscani
Considerações sobre um Intelectual-Publicitário

Para quem não saiba, Oliviero Toscani (n. 1942) é um famoso publicitário italiano, autor dos célebres e polémicos outdoors da Benetton. «Ciao Mamma» é o título de um seu livro de carácter autobiográfico, onde poderemos seguir o riquíssimo itinerário intelectual do autor, mas onde também poderemos seguir um fio condutor unitário que exprime, das mais diversas formas, o conceito do artista-publicitário sobre o discurso da publicidade (Toscani, 1995).

Discurso de altíssima actualidade e relevância, visto o universo sem limites em que intervém e os gigantescos recursos nele investidos. Por exemplo, na FIAT: todos os anos este grupo gasta cerca de 110 milhões de contos em publicidade. Ou na própria Itália: a despesa em publicidade, neste país, é igual à despesa para a investigação industrial, maior do que os investimentos estatais destinados à educação, infinitamente superior aos investimentos na saúde pública. Ou então: empresas há que gastam quase mais em publicidade do que na actividade empresarial própriamente dita. Mais: 80 por cento da facturação publicitária diz respeito a poucos sectores de largo consumo, com o objectivo de produzir quase sempre sugestões de carácter artificial ou ilusório em vez de informações úteis e verdadeiras.

E é aqui que reside o outro núcleo polémico. 


A questão levantada por Toscani diz respeito à filosofia espontânea da publicidade convencional, que não transcende o mínimo denominador comum dos vulgares sentimentos ou impressões estéticas, que é conformista, que se limita a induzir competição com o produto congénere, do tipo «o meu produto é melhor do que o teu», em suma, que não transcende o puro discurso mercantil. Toscani, que no mesmo registo fustiga as agências publicitárias, elas próprias em busca desesperada de autopublicidade, opera uma ruptura com o senso comum publicitário, propondo uma publicidade radical, em sintonia com a própria filologia do conceito (coisa pública, bem público, transparência, interesse público, opinião pública), que, através de temas vitais, funcione como estímulo crítico como discurso autónomo sobre as grandes causas, embora promovido pela United Colors of Benetton, multinacional que decidiu, após anos de campanhas publicitárias convencionais, acabar com as agências publicitárias e «patrocinar», com esse orçamento, causas universais de grande valor moral.

Foi assim que a relação da Benetton com a publicidade se remeteu à figura de simples patrocínio de grandes causas simbolicamente representadas em fotografias da autoria desse grande intelectual-publicitário que é Toscani e que abriu espaço para aquilo que poderíamos designar por pós-publicidade. SIDA, guerra, racismo, ecossistema, sexo, religião são os temas com que Toscani trabalha nas suas mensagens.

Temas sempre apresentados de forma esteticamente muito intensiva e radical e em suporte fotográfico. De tal forma que provocam, sistematicamente, fortíssimas reacções provenientes dos mais variados sectores: críticas, anátemas, censuras, emoções. Quase sempre escândalo!
Poderíamos dizer que Toscani, usando um meio tradicional como a fotografia, superou a fronteira da publicidade convencional, alterou radicalmente os seus esquemas de referência, levou a sua linguagem a um ponto tal que parece tê-la catapultado decisivamente para o plano de arte politicamente empenhada. Mas sem se ter deslocado dos espaços onde a publicidade convencional vive e convive, do seu suporte tradicional. Sobre a fotografia, diz Toscani, em Ciao Mamma: «para mim a fotografia tem a F maiúscula. Não a considero a parente pobre da pintura (...). A fotografia permanece, e permanecerá por muito tempo, o núcleo de partida da imagem moderna» (Toscani, 1995).

Cromaticamente correcto!.


«Ciao Mamma», bem poderia ser, de facto, a frase «assassina» da publicidade a um par de jeans: a fotografia de um jovem, munido apenas de um par de jeans e de uma escova de dentes enfiada no bolso detrás, que parte para essa grande aventura libertária da vida, deixando atrás de si a recordação dos momentos de afectuosa protecção maternal (Marion Graefin Doenhoff, 1995) . «Ciao Mamma! Na companhia de um membro da Família Unida Benetton» (ou de dois, se a escova de dentes também for produzida pela empresa) «parto com segurança e com valores de referência para essa grande aventura da vida, onde a comunidade certa é constituída pela equipa que veste a camisola do clube cromaticamente correcto Benetton!».

Toscani, com efeito, tem vindo a conduzir, com enorme sucesso, à escala mundial, a publicidade da empresa italiana de vestuário, e derivados, Benetton. Com enorme sucesso, é verdade, pois já está presente em mais de cem países e declara um movimento de três biliões de marcos, mas também marcada por planetárias polémicas geradas pelo arrojo estético e moral, apesar de simples, das suas propostas publicitárias. A fórmula originária e genérica que funda e que está presente em todos os produtos publicitários é simplesmente fabulosa, United Colors of Benetton, aludindo - nem sequer subliminarmente -, evocando e decalcando o forte simbolismo contido na designação nacional americana, United States of America: o mesmo número de palavras, a mesma ordem, o mesmo início. A sugestão de uma mesma matriz. O mecanismo desencadeado por esta aproximação é o do funcionamento por analogia: sucesso, poder, liderança, afirmação.

Efeito de estranheza 


Toscani, partindo daqui, rompe com a fórmula publicitária tradicional - que tende dominantemente a envolver a mensagem directa com ambientes de matriz sentimental, romântica ou utópica - e cria efeitos simbólicos de choque, produz imagens que questionam, com uma radicalidade de ruptura, os grandes temas que atravessam a vida nas sociedades modernas: um padre que beija uma freira, a farda manchada de um soldado bósnio morto, um pássaro a boiar numa poça de petrólio derramado, um recém-nascido ensanguentado e ainda preso pelo cordão umbilical sob inúmeros preservativos que esvoaçam, cruzes de um cemitério, «Hiv positive», etc., etc.. «É claro que Toscani abala alguns tabus, mas a nudez que expõe é simplesmente humana», diz dele Thévenaz . «É exactamente esta a sua intenção: a objectividade ‘anti-sentimental’», sublinha este historiador de arte (Thévenaz, 1995). O anti-sentimentalismo constitui, com efeito, a marca de ruptura com a publicidade convencional, com o efeito de adesão sentimental ao produto, com a fantasia induzida pelo mecanismo da anestesia simbólica. O que ele propõe é, pelo contrário, a distanciação crítica, uma espécie de Entfremdungseffekt, de efeito de estranheza, de vaga ou longínqua inspiração brechtiana. Ou, muito simplesmente, um efeito de choque que provoque reflexão crítica induzida pela «vivacidade» da imagem proposta sob o «alto patrocínio» da Cores Unidas da Benetton.

Todas estas são mensagens de ruptura radical, de oposição em relação a ordens ou desordens provocadas pelos poderes convencionais ou naturais: o poder religioso, a guerra e a agressão ambiental (neste caso originada pela guerra no Golfo), a questão demográfica, a SIDA. Trata-se também de mensagens com forte apelo emocional e psicologicamente desestabilizadoras para quem está habituado a ver a realidade com as lentes policromáticas dos romances cor-de-rosa publicitários e a quem é sugerido um subreptício cromatismo de sabor crítico.

E, todavia, estas mensagens possuem uma fortíssima valência substantiva, tocam profundamente a sensibilidade existencial e colectiva, questionam-nos. Mas também é verdade que transportam consigo um «pecado» original, um indício pecaminoso, um indício de interesse privado em causa pública: o interesse na expansão comercial das Cores Unidas da Benetton, através da instrumentalização, com fins dominantemente lucrativos, de temas que tocam profundamente as sensibilidades individuais e colectivas e que possuem essencialmente uma valência pública. Não que o mercado seja pecaminoso. Mas, seguramente, porque, estando em jogo causas tão substantivas e determinantes para o futuro da Humanidade, parece ser justo exigir que estas causas se constituam como fins absolutos, assumam uma valência absoluta, isto é, não sejam referenciáveis a nenhum outro valor que não seja o que elas próprias evidenciam e exigem imperativamente. Pelo contrário, o que aqui se verifica é uma promiscuidade intolerável entre o que deveria ser moralmente absoluto e o que é, inapelavelmente, comercialmente relativo. Entre o que questiona a essência do que é justo socialmente e o que se revela tão-só comercialmente lucrativo.

A Guerra do Golfo 



Toscani terá dito que foi a Guerra do Golfo que o levou a formular o novo quadro em que passaria a formular a publicidade do futuro. A publicidade social e historicamente empenhada. Logo, um momento histórico único como fonte de inspiração e de responsabilidade planetária acrescida. Ele passou a querer mostrar «o que une e separa as pessoas», através da exibição intensiva dos grandes cinco temas da existência: o sexo, a religião, a raça, a vida e a morte. Sem mediações. Com uma técnica intencional de brutalização da comunicação. Provocando emoções fortes sobre o cidadão consumidor da publicidade de larga escala.

A fotografia permanece para Toscani o núcleo de partida da imagem moderna, e nem sequer admite que a considerem como a parente pobre da pintura.

O que, convenhamos, é esteticamente arrojado e audacioso em relação quer à pintura quer ao vídeo. A filosofia de Toscani revela-se, assim, através da estética da comunicação publicitária mediante fotografia, fortemente criativa, competitiva e esteticamente revolucionária. Volta a dar à fotografia algo que ela estava a perder em face destes poderosos adversários.

E a verdade é que este publicitário, com a sua mágica fórmula fotográfica, tanto discutida e posta em causa em todo o mundo, conseguiu ser talvez a peça fundamental do enorme empório que é hoje a Benetton. Uma empresa que fascina não tanto pelas formas e pelas cores que produz quanto pela imagem que de si mesma conseguiu criar. Como que a demonstrar que hoje a imagem é tudo e o produto nada. Ainda que alguns, aplicando a lógica do boomerang, já comecem a falar, com razão ou sem ela, de crise. Uma crise que se fundaria mais na derrocada de uma determinada fórmula publicitária do que na necessidade, bem mais prosaica, de agasalho e de culto da arte de bem vestir.

A pós-publicidade 


Toscani opera com uma distinção fundamental entre a publicidade convencional e aquilo a que chamo pós-publicidade: aquela idealiza e absolutiza as virtuais qualidades do produto; esta limita-se a associar, não o produto, mas a própria marca (United Colors of Benetton), às grandes causas, tal como nos são propostas pelo artista-publicitário, em suporte fotográfico e sob o pressuposto de que a fotografia se mantém como o núcleo de partida da imagem moderna.
Não se comunica, pois, o produto ou os produtos, mas a marca. O que já constitui uma revolução em relação à publicidade convencional. Mas, depois, a própria comunicação publicitária é proposta de forma somente alusiva, onde a mensagem fundamental é uma grande causa social, totalmente autónoma em relação ao produto e à marca. Esta limita-se a aparecer associada, na medida em que se revela como simples patrocinadora. Diz Toscani: «mas se há um novo modo de fazer arte no mundo tecnológico de hoje, é precisamente aquele que não recusa a contaminação com a cultura de massas, da qual a publicidade é uma das expressões (...) mais visíveis». O conceito nem parece ser muito original: lembremo-nos, por exemplo, de Andy Warhol. Mas que a caminhada de Toscani o é certamente, foi testemunhado pelo Pasolini dos «Scritti Corsari» quando analisou o famoso slogan dos «Jeans Jesus» e o considerou como algo surpreendentemente inovador: «o seu espírito, disse então Pasolini, é o novo espírito (muito antecipado) da segunda revolução industrial e da consequente mutação dos valores». E estávamos em 1973, em plena era do slogan, quando Toscani ainda não se tinha desprendido completamente da lógica publicitária convencional. Mas, agora, que esta comunicação publicitária se reduz à forma do patrocínio e se fixa em temas ou causas de significado social, como o beijo entre um padre e uma freira, uma mulher negra que amamenta uma criança branca, uma recém-nascida (Giusy) com o cordão umbilical, um moribundo (David Kirby) de SIDA, uma nuvem de preservativos, as cruzes de um cemitério, a farda do soldado conhecido Marinko Gagro ensanguentada, agora, dizia, a inovação é radical, sendo certo que Pasolini poderia ver confirmado o seu diagnóstico de então.
Num registo hiperrealista, um pouco cínico e sem pretensões de carácter conceptual, as questões que poderíamos pôr a Toscani são as seguintes. Vocês fazem este tipo de publicidade porque querem limpar a consciência? Porque têm uma moral dúplice? Porque querem redimir o mundo? Ou, simplesmente, porque o que pretendem é, tão-só, fazer com que falem da Benetton, para mais e melhor vender?
Benetton não é um santo e a sua empresa não é um agência de causas morais. O analista também não é parvo. Mas o facto é que a sua publicidade assume esta forma diferente. Não fala de si nem dos seus produtos. Fala de grandes causas, provocando grandes escândalos, porque a sua linguagem em vez de estilizar e idealizar a sensibilidade comum, agride-a e fere-a, provocando reacções de carácter interactivo, isto é, acabando por transformar o destinatário num sujeito (re)activo. Assim, por mais pragmatismo que se esconda por detrás desta arte publicitária, não é possível deixar de antever fortes efeitos nesse mundo fantástico e tão poderoso que é o da publicidade.

Bibliografia 


Toscani, Oliviero
1995, Ciao Mamma, Milano, Mondadori
Doenhoff, Marion Graefin
1995, Toscani: i colori del declino, in Reset, Roma, n. 23
Thévenaz, Michel
1995, Quel fotografo è solo un venditore, in Reset, Roma, n. 23
Pasolini, Pier Paolo
1975, Scritti Corsari, Milano, Garzanti

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